Pode parecer pedante escrever sobre Machado de Assis diante da crise
econômica e política que angustia a população brasileira. Parece, mas não
é, pois este emérito escritor soube como poucos penetrar nas ocultas
razões que mobilizam o comportamento humano. Machado de Assis
escreveu sua obra entre o fim do século 19 e o início do século 20, uma
época já distante de nós, mas que anunciava, através de metáforas, o
nascimento da sociedade contemporânea, na qual vivemos intensamente.
Aquele foi um período de transição, e portanto de conflitos ideológicos,
protagonizados pela decadência da sociedade agrária e colonial e o
alvorecer de uma sociedade urbana, industrial e inserida na periferia do
capitalismo. Os valores tradicionais que agonizavam eram conhecidos,
mas os valores novos, que se articulavam, geravam apoios e repulsas
entre os vários segmentos da sociedade daquela época. Recluso e
introspectivo, Machado de Assis incorporou a visão cética desses conflitos
ideológicos, e colocou-se como um crítico amargurado mas benevolente
do que os filósofos chamam de a condição humana.. Sábio, Machado de
Assis analisava a humanidade com ironia, pois não acreditava que a
história conduzisse-nos rumo à salvação, e nem à perdição. Para este
intelectual, estamos sempre na encruzilhada, decidindo a cada instante
qual rumo devemos tomar, mas sem atingir um destino terminal. E, entre
essas contínuas escolhas, só raramente escolhemos o melhor caminho,
pois permanecemos surdos em relação aos apelos da Razão. E não há
remédios à vista que nos curem desses desvios. Então o que esperar do
futuro da humanidade, além das multiplicações dos erros, seguidos das
tentativas inúteis de correção do roteiro em uma via de mão única? A
grandeza de Machado recomenda como paliativo a essa imensa dor a
benevolência com a humanidade, sem cair no pietismo ou no incentivo à
degradação. Sorrir chorando, sem tentar mudar o curso desse trajeto, pois
este ativismo gera a violência inútil, tanto dos reformadores como dos
conservadores. Mas essa aversão ao ativismo militante, não quer dizer
apatia ou olímpica indiferença em relação aos dramas existenciais da
humanidade. Restou a esse criativo intelectual a solidão do escritor
talentoso, pacientemente dedicado ao seu trabalho, que durante toda sua
produtiva vida escreveu uma obra majestosa, distribuída entre romances,
contos, poesias e crônicas. Machado de Assis é um escritor delicioso de
ler, mas de difícil compreensão, pois suas frases curtas, construídas com
economia de palavras, revelam conceitos angulares, mas muitas vezes
escondidos através de metáforas, que podem dizer muito se decifradas
pelo leitor. Com esta estratégia literária, Machado não visa dificultar o
entendimento do seu texto, mas torná-lo transparente mediante uma
imagem plástica, palpável, evitando assim a abstração dos conceitos
despidos de sua roupagem popular e cotidiana. A excelência dessa
linguagem se expressa de forma cristalina em suas obras de maturidade,
como está evidente nos romances Memórias Póstumas de Brás Cubas,
Dom Casmurro, Quincas Borba e Memorial de Aires. Mas atinge o seu
resplendor em seus contos, pois Machado de Assis é um contista emérito,
ombreando-se com os melhores contistas da literatura mundial. É no
conto que Machado de Assis revela melhor a sua visão de mundo cética,
benevolente e risonha, mas sem concessões ao que somos e ao que
fazemos. Mas ler entendendo esse autor exige um esforço intelectual que
vai muito além da leitura de romances como entretenimento. Requer
maturidade intelectual do leitor, um patrimônio cultural só atingido por
quem cultiva o saber. Mas esse exercício da Razão é indispensável para a
descoberta dos tesouros que a vida oculta aos ociosos. É esta aliança com
a preguiça intelectual que nos veda o entendimento mais precioso contido
na obra desse autor: -Machado de Assis nos auxilia nos momentos mais
angustiantes da vida, pois nos mostra que o distanciamento do
burburinho da sociedade, e a opção por uma existência de observador
recluso é a condição essencial para o exercício livre da Razão, nossa
melhor amiga, mestre e companheira para convivermos com nossas
fragilidades, e cujo convívio conduz à tolerância e a solidariedade
com o próximo. Não é bom ler Machado de Assis?
Autor e Colunista: Professor Gilberto Radicce